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quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Desesperados, anónimos:


Noite de reunião imaginária. Empresários anónimos. Como alcoólicos anónimos, toxicodependentes anónimos... Entra-se sem dar o nome. É sentar e ouvir. E falar. Levantou a mão. O ambiente é duro. Há que confessar, reconhecer o crime, matutar nas falhas. Disse:
"Eu também criei uma empresa. Era uma coisa pequena ao princípio, uma boa localização, eu, a minha mulher e uma funcionária que ajudava na cozinha..."
('Ramiro Moreira' tinha aberto um restaurante há uns anos. Alinhou umas receitas especiais, havia trabalhado na restauração, juntou um dinheiro com a ajuda de uns biscates e gorjetas. E avançou, há 20 anos. Agora estava ali porque um amigo o levou... O desespero está-lhe na cara.)
"Os primeiros anos foram bons. Muitos clientes, gente amiga, casa cheia aos fins de semana. Metemos logo mais dois funcionários, depois uma ajudante de cozinha que a minha mulher estava a ficar cansada e lá fomos crescendo..."
(Os outros empresários ouvem a história como se fosse a sua. A narrativa é quase sempre a mesma. Criar um negócio para melhorar a vida. Depois vêm os problemas, uns atrás dos outros...)
"Um dia apareceu a ASAE. Queria mais inox na cozinha: novos balcões, frigoríficos com maior capacidade, mais isto e aquilo... Muito dinheiro... Mas que havia de fazer? Tinha de ser. E a banca emprestava, e lá me meti naquilo a pagar a prestações... Mas depois chegou a crise... Não é a primeira vez que há crise, mas esta é diferente... Primeiro, os clientes deixaram de beber vinho, que é onde temos um bocado de margem. Entradas, também não, sobremesas só pra as crianças... Depois começaram a aparecer menos vezes... Claro, a gente pensa que isto é passageiro e que o Passos Coelho ia correr com o Sócrates e endireitar isto, que o Estado leva tudo e a gente trabalha, trabalha, e fica cada vez com menos..."
(Silêncio absoluto. Continua)
"Até que aqueles filhos da p... aumentaram o IVA para 23%!... Mas para que caralh... foram estes grandes cabrões fazer uma coisa destas? Nem nós vendemos, nem as pessoas aparecem, e até eles perdem!... Mas porquê? Que apertassem a fiscalização para a malta que sempre fugiu, está certo... Mas as pessoas já têm cada vez menos dinheiro: se aumentamos o IVA para 23%, deixam mesmo de vir!..."
(Na reunião desta noite estão oito empresários sentados em círculo. Todos com estabelecimentos fechados ou a fechar. Como são gerentes, não têm direito a subsídio de desemprego. Carregados de dívidas, sabem que vão ficar sem o restaurante mas também sem a casa da família porque os bens pessoais vão responder pelas dívidas. Uns têm filhos pequenos, outros já adultos mas a precisar deles. Vão passar pelo vexame social de terem sido uns 'senhores' e agora são isto, uns farrapos, uns idiotas que não amealharam nas vacas gordas... Tinham BMW ou Mercedes e o rei na barriga - dizem os vizinhos. Agora... rua).
"A situação é esta: devo 80 mil euros à banca pela remodelação que fiz do restaurante, tudo como devia ser, um luxo... Tenho cinco empregados para indemnizar. Devo ao Estado a Segurança Social e o IVA dos últimos seis meses porque depois do 15 de setembro isto parou tudo... Ainda não paguei o novo sistema de faturação que me põe doido para saber como funciona... E vou ficar inibido de ser empresário nos próximos anos porque fali o meu negócio... Mas digam-me lá: onde é que eu falhei?"
(Uma economia em crise mata os maus e os bons. Destrói os homens e as mulheres, por dentro e por fora. Isto estava à vista quando o Estado aumentou o IVA para 23%. Gaspar não ouviu. Passos não ouviu. A maioria no Parlamento não ouviu. Agora é isto... Divorciam-se no papel para tentar salvar a mulher e os filhos. Pensam em fugir para o Brasil ou emigrar para a Europa nem que seja para servir à mesa. Filha da p... de vida..., repetem sem parar).
Voltam na semana seguinte. Quando conseguem.
JN, sábado, 16 de fevereiro, página 7: "Em apenas 72 horas suicidaram-se dois empresários da restauração do Porto. E nos últimos três meses foram sete os que puseram termo à vida na região do Algarve".
No JN de 20/02/13

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