Sr. Secretário de Estado das Obras Públicas, Transportes e Comunicações. Penso que só por isso devia merecer o seu respeito e o respeito da sua
geração. Geração, a sua, que ao invés da minha, não sofreu a míngua dum pós
guerra, nem consumiu cinco anos da juventude numa inútil guerra pelas florestas
e bolanhas africanas, hipotecando o futuro, interrompendo profissões, estudos e
até em milhares de casos a própria vida. Futuro bem diferente do que a minha
geração lhe proporcionou, justamente porque não quisemos que tivessem o mesmo
fado que nós.
Aqui chegados, à velhice, não esperávamos o agradecimento da vossa
geração, porque fizemos o que devíamos fazer, dar aos filhos mais e melhor do
que recebemos dos nossos pais, mas também não esperávamos a ingratidão, o
desprezo e a desumanidade de quem não andou descalço, não passou fome, não
expôs o corpo às balas e às doenças tropicais, não rasgou as carnes nas
espinheiras, nem respirou tijolos nas picadas africanas, ou dormiu em enxergas
de palha de tão sujas de suores e poeiras acumulados que se tornavam
impermeáveis, com mosquitos, percevejos e pulgas por companheiros, tudo em
defesa duma pátria, que agora nos escorraça.
Aqui chegados dizia acima, com sorte, porque a vida é uma sorte, temos
hoje naturalmente os nossos filhos a governar, filhos da nossa esperança, que
como já disse, tiveram tudo mas, sabemos agora, que mais do que mereciam.
Para a vossa geração, tudo caiu do céu, como o maná bíblico, só tiveram
de o apanhar. Nada devem aos analfabetos dos vossos predecessores, que de uma
nação pobre, inculta, silenciada e subjugada - onde presumivelmente gostariam
de viver, não? - , construíram um país livre e democrático para viverem e
medrarem!
Cuidamos agora que nos enganámos, mas já é tarde para remediar o mal
feito, estamos velhos e dependentes, facilmente à mercê da vilanagem de
“filhos” tiranos, que em minha opinião, o senhor tão bem personifica.
Só assim posso entender a baixeza e a malvadez das suas decisões e da
governação de que faz parte. Presumo, que devido aos seus vastos afazeres
académicos e políticos nunca terá lido a Declaração Universal dos Direitos do
Homem, proclamada pela Assembleia Geral da ONU a 10 de Dezembro de 1948, nem
sequer alguns artigos da nossa Constituição, mormente os artigos 2º, 18º e 63º,
mas também os artigos 65º e 66º. Se não os leu, aconselho que os leia o mais
depressa possível, e os interprete, imparcialmente, se for capaz. Se os leu,
então é grave, porque ou não entendeu nada, ou os subverteu o que ainda é pior.
Saiba o senhor que, com a minha sorte também chegará a velho, e olhe
que é já daqui a pouquinho, só espero é que os seus “filhos” não o tratem como
o senhor a mim, aliás, a nós,
porque todos os eus nesta minha carta, não só se referem à minha
pessoa, mas a toda uma malfadada e mal amada geração.
Usufruo de uma reforma da segurança social, para onde descontei desde
sempre. Comecei a trabalhar aos 12 anos e a descontar aos 14 ( na altura a
idade oficial para se trabalhar). Estudei alguma coisa à noite, após o
trabalho, porque antes os meus pais não tinham dinheiro para tal e até porque a
minha “féria” fazia falta lá em casa para garantir a dieta magra da família.
Não fugi, fiz tropa e fizeram-me sargento. Apaixonei-me pelos cheiros e pelos
horizontes de África, fiquei lá. Projectei e “plantei” linhas de alta tensão
por centenas e centenas de quilómetros, e vim embora no ano em que o senhor
nasceu, veja lá, com dois filhos e uma mão à frente e outra atrás, mas
contente, porque o meu país finalmente era um país livre, para mim, para os
meus filhos e para os meus futuros netos.
O Estado não gastou um tostão com o meu retorno, nem com os meus,
apenas gastou tinta invisível no carimbo que me colocou na testa que dizia
“retornado” e que não me deixou exercer a minha profissão, apesar de ter patrão
interessado, porque a tirania de outros que entretanto “invadiram” o meu país,
não me deixavam trabalhar sem me inscrever no partido dominante. E eu embirro
com imposições sobretudo de pensamento, de livre escolha.
De projectista de linhas de alta tensão, fui por acaso e necessidade,
parar a ferroviário, concretamente a revisor de bilhetes. Sofri outra vez uma
vida de privações e a minha família ainda mais, mas dignamente! Enquanto,
calculo, o senhor andava de livros na mochila ou debaixo do braço, eu voltava a
dormir em enxergas sebentas; a passar frio; a descansar umas horas de dia e a
trabalhar muitas de noite, meses sem ter um dia de folga; a deitar-me quando a
minha mulher se levantava para também ir trabalhar e a levantar-me quando ela
regressava; a passar muitos dias sem ver os filhos, nem os acompanhar à escola,
ao médico; a passar natais, aniversários e outras datas marcantes na vida de
qualquer pessoa, fora da família, na companhia de colegas, ou só, por esse país
acima e abaixo. E até além fronteiras! Mas, sabia que o meu sofrimento e
dedicação ao trabalho seria retribuído no fim do mês, garantindo assim o
sustento e o bem estar relativo da minha família e porventura o meu, no fim da
minha vida laboral activa. Não trabalhava apenas 60 dias por ano como um
mentiroso investido de deputado, disse hoje na Assembleia da República, mas…
adiante, que vozes de burro não chegam aos céus. Mas, sim, trabalhei muitas
vezes 60 dias num ano, só que consecutivamente e em dois meses!
Por conseguinte, reconstruí a minha vida a partir do nada, criei os
filhos, nada devo ou alguma vez devi a quem quer que fosse e muito menos ao
Estado e à comunidade. Durante a minha vida de ferroviário, que fortuitamente
abracei , e pela qual me apaixonei, modestamente, sei que contribuí para a
evolução de mentalidades entretanto operada, tanto nas condições de trabalho na
altura e dos que me sucederam, como para a própria organização do trabalho na
empresa, de que, curiosamente, ainda restam resquícios, após quase 10 anos na
reforma.
Sabia também, (sabia…) desde o dia em que entrei na empresa – imagine,
teria o senhor menos de um ano de idade! - que quando me reformasse, se lá
chegasse, teria direito pelo Estado, a uma reforma de acordo com os anos e
valores que descontei (artº 63º da CR), e direito a um livre trânsito vitalício
nos comboios da empresa, desde que tivesse mais de 25 anos de serviço. Esse foi
o contrato! Ou melhor, era o contrato, porque o senhor,
prepotentemente, usando os poderes que o cargo governativo lhe confere,
a coberto do Orçamento de Estado e de um ardil populista, não teve pudor em
deitar para o lixo.
Era, disse eu, e repito, porque sou do tempo da honra dos Homens,
selada com um simples aperto de mão, a palavra, o papel escrito, ou o direito
adquirido, era igual.
Como eu me enganei! Como fui enganado! Como os valores mudaram e como
eu fui irresponsável por ter acreditado nas virtudes dos homens livres!
Quem me governa hoje considera que contratos ou acordos só são válidos
e se cumprem os que são feitos com bancos, ou com grandes empresas, a que chamam
Parcerias Público Privadas.
Durante uns anos, ainda acreditei nas virtudes de certo idealismo
político, - e olhe que não ando por aí arregimentado a agitar bandeirinhas -
depois comecei a ter dúvidas, mas agora o senhor e os seus colegas de governo,
definitivamente, tiraram-mas. Donde, e em conclusão, aprendi que este país não
é para velhos, nem para gente séria!
Com o meu muito obrigado pela sua contribuição para a minha “felicidade”,
faço votos que não chegue a velho para não ter de sofrer na carne e na alma o
que eu e outros como eu, estamos agora a sofrer.
A terminar informo-o que sei o que dizem os artigos 21º,22º e 72º da
Constituição da República Portuguesa, a nossa!
Passe bem.
PS: Desculpe, porém, não podia terminar sem lhe dar os parabéns, porque
nem tudo que fez foi mau, mercê do seu comportamento tirano, prepotente e
vingativo, conseguiu unir no seio ferroviário o que ideologicamente, nunca se
conseguiu, antes pelo contrário! Hoje já teve uma amostra.
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