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terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Carta de um revisor reformado ao Secretario de Estado dos Transportes:


Sr. Secretário de Estado das Obras Públicas, Transportes e Comunicações. Penso que só por isso devia merecer o seu respeito e o respeito da sua geração. Geração, a sua, que ao invés da minha, não sofreu a míngua dum pós guerra, nem consumiu cinco anos da juventude numa inútil guerra pelas florestas e bolanhas africanas, hipotecando o futuro, interrompendo profissões, estudos e até em milhares de casos a própria vida. Futuro bem diferente do que a minha geração lhe proporcionou, justamente porque não quisemos que tivessem o mesmo fado que nós.
Aqui chegados, à velhice, não esperávamos o agradecimento da vossa geração, porque fizemos o que devíamos fazer, dar aos filhos mais e melhor do que recebemos dos nossos pais, mas também não esperávamos a ingratidão, o desprezo e a desumanidade de quem não andou descalço, não passou fome, não expôs o corpo às balas e às doenças tropicais, não rasgou as carnes nas espinheiras, nem respirou tijolos nas picadas africanas, ou dormiu em enxergas de palha de tão sujas de suores e poeiras acumulados que se tornavam impermeáveis, com mosquitos, percevejos e pulgas por companheiros, tudo em defesa duma pátria, que agora nos escorraça.
Aqui chegados dizia acima, com sorte, porque a vida é uma sorte, temos hoje naturalmente os nossos filhos a governar, filhos da nossa esperança, que como já disse, tiveram tudo mas, sabemos agora, que mais do que mereciam.
Para a vossa geração, tudo caiu do céu, como o maná bíblico, só tiveram de o apanhar. Nada devem aos analfabetos dos vossos predecessores, que de uma nação pobre, inculta, silenciada e subjugada - onde presumivelmente gostariam de viver, não? - , construíram um país livre e democrático para viverem e medrarem!
Cuidamos agora que nos enganámos, mas já é tarde para remediar o mal feito, estamos velhos e dependentes, facilmente à mercê da vilanagem de “filhos” tiranos, que em minha opinião, o senhor tão bem personifica.
Só assim posso entender a baixeza e a malvadez das suas decisões e da governação de que faz parte. Presumo, que devido aos seus vastos afazeres académicos e políticos nunca terá lido a Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamada pela Assembleia Geral da ONU a 10 de Dezembro de 1948, nem sequer alguns artigos da nossa Constituição, mormente os artigos 2º, 18º e 63º, mas também os artigos 65º e 66º. Se não os leu, aconselho que os leia o mais depressa possível, e os interprete, imparcialmente, se for capaz. Se os leu, então é grave, porque ou não entendeu nada, ou os subverteu o que ainda é pior.
Saiba o senhor que, com a minha sorte também chegará a velho, e olhe que é já daqui a pouquinho, só espero é que os seus “filhos” não o tratem como o senhor a mim, aliás, a nós,
porque todos os eus nesta minha carta, não só se referem à minha pessoa, mas a toda uma malfadada e mal amada geração.
Usufruo de uma reforma da segurança social, para onde descontei desde sempre. Comecei a trabalhar aos 12 anos e a descontar aos 14 ( na altura a idade oficial para se trabalhar). Estudei alguma coisa à noite, após o trabalho, porque antes os meus pais não tinham dinheiro para tal e até porque a minha “féria” fazia falta lá em casa para garantir a dieta magra da família. Não fugi, fiz tropa e fizeram-me sargento. Apaixonei-me pelos cheiros e pelos horizontes de África, fiquei lá. Projectei e “plantei” linhas de alta tensão por centenas e centenas de quilómetros, e vim embora no ano em que o senhor nasceu, veja lá, com dois filhos e uma mão à frente e outra atrás, mas contente, porque o meu país finalmente era um país livre, para mim, para os meus filhos e para os meus futuros netos.
O Estado não gastou um tostão com o meu retorno, nem com os meus, apenas gastou tinta invisível no carimbo que me colocou na testa que dizia “retornado” e que não me deixou exercer a minha profissão, apesar de ter patrão interessado, porque a tirania de outros que entretanto “invadiram” o meu país, não me deixavam trabalhar sem me inscrever no partido dominante. E eu embirro com imposições sobretudo de pensamento, de livre escolha.
De projectista de linhas de alta tensão, fui por acaso e necessidade, parar a ferroviário, concretamente a revisor de bilhetes. Sofri outra vez uma vida de privações e a minha família ainda mais, mas dignamente! Enquanto, calculo, o senhor andava de livros na mochila ou debaixo do braço, eu voltava a dormir em enxergas sebentas; a passar frio; a descansar umas horas de dia e a trabalhar muitas de noite, meses sem ter um dia de folga; a deitar-me quando a minha mulher se levantava para também ir trabalhar e a levantar-me quando ela regressava; a passar muitos dias sem ver os filhos, nem os acompanhar à escola, ao médico; a passar natais, aniversários e outras datas marcantes na vida de qualquer pessoa, fora da família, na companhia de colegas, ou só, por esse país acima e abaixo. E até além fronteiras! Mas, sabia que o meu sofrimento e dedicação ao trabalho seria retribuído no fim do mês, garantindo assim o sustento e o bem estar relativo da minha família e porventura o meu, no fim da minha vida laboral activa. Não trabalhava apenas 60 dias por ano como um mentiroso investido de deputado, disse hoje na Assembleia da República, mas… adiante, que vozes de burro não chegam aos céus. Mas, sim, trabalhei muitas vezes 60 dias num ano, só que consecutivamente e em dois meses!
Por conseguinte, reconstruí a minha vida a partir do nada, criei os filhos, nada devo ou alguma vez devi a quem quer que fosse e muito menos ao Estado e à comunidade. Durante a minha vida de ferroviário, que fortuitamente abracei , e pela qual me apaixonei, modestamente, sei que contribuí para a evolução de mentalidades entretanto operada, tanto nas condições de trabalho na altura e dos que me sucederam, como para a própria organização do trabalho na empresa, de que, curiosamente, ainda restam resquícios, após quase 10 anos na reforma.
Sabia também, (sabia…) desde o dia em que entrei na empresa – imagine, teria o senhor menos de um ano de idade! - que quando me reformasse, se lá chegasse, teria direito pelo Estado, a uma reforma de acordo com os anos e valores que descontei (artº 63º da CR), e direito a um livre trânsito vitalício nos comboios da empresa, desde que tivesse mais de 25 anos de serviço. Esse foi o contrato! Ou melhor, era o contrato, porque o senhor,
prepotentemente, usando os poderes que o cargo governativo lhe confere, a coberto do Orçamento de Estado e de um ardil populista, não teve pudor em deitar para o lixo.
Era, disse eu, e repito, porque sou do tempo da honra dos Homens, selada com um simples aperto de mão, a palavra, o papel escrito, ou o direito adquirido, era igual.
Como eu me enganei! Como fui enganado! Como os valores mudaram e como eu fui irresponsável por ter acreditado nas virtudes dos homens livres!
Quem me governa hoje considera que contratos ou acordos só são válidos e se cumprem os que são feitos com bancos, ou com grandes empresas, a que chamam Parcerias Público Privadas.
Durante uns anos, ainda acreditei nas virtudes de certo idealismo político, - e olhe que não ando por aí arregimentado a agitar bandeirinhas - depois comecei a ter dúvidas, mas agora o senhor e os seus colegas de governo, definitivamente, tiraram-mas. Donde, e em conclusão, aprendi que este país não é para velhos, nem para gente séria!
Com o meu muito obrigado pela sua contribuição para a minha “felicidade”, faço votos que não chegue a velho para não ter de sofrer na carne e na alma o que eu e outros como eu, estamos agora a sofrer.
A terminar informo-o que sei o que dizem os artigos 21º,22º e 72º da Constituição da República Portuguesa, a nossa!
Passe bem.
PS: Desculpe, porém, não podia terminar sem lhe dar os parabéns, porque nem tudo que fez foi mau, mercê do seu comportamento tirano, prepotente e vingativo, conseguiu unir no seio ferroviário o que ideologicamente, nunca se conseguiu, antes pelo contrário! Hoje já teve uma amostra.

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